http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/333/heresia-uma-palavra-que-nao-combina-com-n-t-wright
Texto de Timóteo Carriker
Gosto muito de surfar. Neste
esporte, Kelly Slater, dez vezes campeão mundial, foi o atleta mais novo (20
anos) e também o mais velho (38 anos) a conquistar o título. Slater se destaca
entre os mais próximos concorrentes. Essa é a impressão que se tem também ao
escrever sobre a importância de Nicholas Thomas Wright.1
Quem é N. T.
Wright?
Nascido em 1948, N. T. Wright é
um dos estudiosos de Novo Testamento mais conhecidos e respeitados. A lista de
suas qualificações e publicações é extensa. Além de dois doutorados acadêmicos,
ele recebeu nove outros doutorados honorários das melhores universidades
britâncias, canadenses e americanas. São mais de setenta livros
publicados, centenas de artigos em revistas acadêmicas, entre outras, como
também entrevistas para TV e rádio. É um homem da academia, tendo ensinado mais
de vinte anos na Universidade de Oxford, na Inglaterra, e na Universidade
McGill, no Canadá. É também homem da igreja, tendo servido na Igreja Anglicana
como deão de Lichfield por cinco anos, teólogo cânone de Westminster e bispo de
Durham durante sete anos.
Sua contribuição
Não é fácil classificar Wright.
Grosso modo, ele representa os cristãos mais conservadores -- pelo menos em
comparação com muitos liberais com os quais dialoga, como Marcus Borg, por
exemplo. Entretanto, o campo de cristãos “conservadores” é bastante abrangente
e entre eles Wright se identifica mais com os “evangelicais abertos”; concorda
com alguns dos preceitos da “Nova Perspectiva sobre Paulo” e simpatiza com a
busca histórica pela identificação da pessoa de Jesus, apesar de ser um crítico
ferrenho do “Seminário de Jesus” -- grupo de historiadores e expositores
bíblicos do Novo Testamento que procura identificar as fontes “autenticamente
históricas” dos Evangelhos para descrever quem Jesus “realmente” era. Wright
promove publicamente muitas posições evangélicas tradicionais, como a
ressurreição corporal de Jesus, a segunda vinda do Filho de Deus, a morte
substitutiva de Cristo, o pleno perdão por Deus em Cristo Jesus e, apesar da
alegação contrária de alguns críticos, a justificação pela fé. Publicamente
também denuncia o reconhecimento das uniões homossexuais como legítimas. Tudo
isto é o que esperamos de líderes do mundo evangélico conservador. Porém, o que
torna Wright diferente?
As contribuições de Wright são
principalmente duas. A primeira é que ele procura entender e dialogar com
“todos os estudiosos” do Novo Testamento, não apenas com os conservadores, o
que é raro entre estudiosos conservadores do Novo Testamento. Apresenta a sua
dívida para com “todos” eles como também sua crítica brilhante. Ou seja, não
tem medo de aprender e aproveitar ideias acertadas daqueles que alguns
conservadores consideram “campo inimigo”. Essa atitude tem um preço. Por um
lado, ele é mal interpretado, às vezes a ponto de ser acusado de heresia,2 como
se abraçasse ideias liberais. Por outro, é taxado de fundamentalista por alguns
liberais. Entretanto, a busca pela verdade exige que os julgamentos sejam
adiados até que o material seja adequadamente examinado. Assim, Wright é um
modelo de estudioso que procura objetividade e imparcialidade nas suas
pesquisas -- características raras na guilda de teólogos.
A segunda -- e a maior --
contribuição de Wright está nas suas propostas a respeito do Jesus histórico.
Não há espaço aqui para elaborá-las e talvez não seja necessário fazê-lo. Basta
dizer que ele aproveita uma vasta literatura das últimas décadas que avançou
significativamente no conhecimento do pano de fundo judaico de Jesus, a fim de
situá-lo “dentro” deste contexto.
É estranho que alguns críticos de
N. T. Wright avisem os leitores sobre os “perigos do enfoque excessivo no
contexto judaico” ao se estudar sobre Jesus; preferem o contexto da Reforma
Protestante para esclarecer quem era Jesus e qual era a sua missão. Hoje, os
melhores expositores bíblicos não medem esforços para entender Jesus, o seu
ensino e as suas ações dentro do pano de fundo judaico da sua época. Por que
este Jesus “histórico” é melhor que o Jesus dos reformadores? Ora, estes
exerceram um papel crucial para tirar a roupagem medieval do Jesus da tradição
católica. No entanto, não tiveram acesso a centenas de documentos
contemporâneos de Jesus, os quais temos hoje e nos ajudam a enxergá-lo mais
próximo do seu contexto histórico. Negar isto é simplesmente “enfiar a cabeça
no buraco”. Dar conta disto é tarefa complexa e árdua, que envolve debates e
teorias que têm sido testados ao longo do último século. Wright é uma luz
brilhante nesse processo.
Sua produção
Talvez a sua produção mais significativa seja a série de seis volumes intitulada “Origens Cristãs e a Questão de Deus”, com três volumes publicados: “O Novo Testamento e o Povo de Deus” (1992), “Jesus e a Vitória de Deus” (1996) e “A Ressurreição do Filho de Deus” (2003). O quarto volume, “Paulo e a Justiça de Deus”, será lançado nos próximos meses.3
Cada volume tem em torno de
setecentas a oitocentas páginas e a contribuição dada já posicionou Wright como
o estudioso do Novo Testamento mais importante do século para muitos biblistas
conservadores e liberais. A obra tem influenciado os estudiosos do Novo
Testamento tanto quanto os escritos de Rudolf Bultmann o fizeram no século
passado. Para Gordon Fee, por exemplo, conhecido expositor conservador e
pentecostal do Novo Testamento, Wright é a maior influência de sua vida
acadêmica.
Apesar disso, ou talvez por causa
disso, há controvérsias de toda sorte. Afinal, as suas mais de 20 mil páginas
não podem agradar a todos. Dezenas de críticos de Wright, os quais tenho
acompanhado, reconhecem a sua contribuição à compreensão do Novo Testamento,
ainda que discordando dele em alguns pontos. Contudo, alguns avaliam-na de modo
diferente.
Arauto ou herege?
Faço aqui uma distinção não inteiramente justa. Há teólogos que querem promover a fé cristã e outros que não se importam com isso. Interessa-nos os primeiros. Para estes, há basicamente duas maneiras de promovê-la: citando as doutrinas consagradas pelos principais credos e, ou, teólogos do seu grupo (se católico romano, as encíclicas da igreja; se evangélico, os teólogos reformados) ou enraizando as suas ideias nas Escrituras. Enquanto uns velam pela “sã doutrina”, outros querem saber o que a Bíblia diz e como podemos entendê-la e colocá-la em prática. Para isto, buscam compreender o contexto em que as passagens estão inseridas. Os primeiros são principalmente dogmáticos e o segundo grupo é denominado “biblista”. Os biblistas são quase sempre vistos como suspeitos pelos dogmáticos, como os próprios reformadores o eram na sua época. Surpreendentemente, os dogmáticos gastam mais energia criticando seus colegas do que com aqueles que não se interessam pela fé ou que são ateus assumidos.
Sei que esta distinção é uma
caricatura e que bons dogmáticos procuram interagir com as Escrituras e bons
biblistas jamais ignoram as interpretações (dogmas) feitas ao longo dos
séculos. Entretanto, o argumento final de cada grupo não deixa de ser distinto:
ou “Lutero (Calvino etc.) diz...” ou “a Bíblia diz...”. E, para complicar ainda
mais a nossa descrição, os reformadores protestantes advogavam a segunda
estratégia -- e não a primeira -- ao conclamar “Sola Scriptura”!
Assim é a natureza do debate
entre Tom Wright e John Piper sobre a doutrina da “imputação da justiça de
Deus” àqueles que creem. Ambos escreveram livros a respeito desta questão.
Piper reclama que a posição de Wright não coincide com a perspectiva dogmática
e Wright, por sua vez, que Piper não está ouvindo o que as Escrituras dizem.
Independentemente de quem “está certo”, Wright adota o princípio protestante da
autoridade última das Escrituras, enquanto Piper4 adota o
princípio católico da autoridade da tradição da igreja. Neste debate
específico, Wright é acusado de negar a doutrina da justificação pela fé.
Porém, não é o caso. Ele afirma a justificação pela fé, mas esclarece que uma
passagem específica, Romanos 4.3, que de fato foi um pilar na Reforma de
Lutero, não fala sobre a justiça “imputada”. A observação de Wright é tanto
linguística (a melhor tradução da palavra não é “imputar”) quanto literária
(esta não é a direção do argumento de Paulo em Romanos) e histórica (o debate
luterano sobre o sistema de indulgências não corresponde à crítica de Paulo
sobre a relação entre a graça e a Lei).5 Wright afirma que em
outras passagens Deus imputa aspectos do seu carácter na vida daqueles que
creem, o que não ocorre no trecho citado.
Tudo isto faz parte de uma
perspectiva maior de Wright, que considera o evangelho essencialmente público.
Por “público” ele entende a revelação de Deus dentro da história e o seu
propósito final para a criação. Neste sentido, as boas novas (o evangelho)
visam novos céus e nova terra, e não apenas a transformação individual -- mesmo
que a inclua. As implicações desta perspectiva é que a justiça de Deus precisa
ser concretizada não apenas nos corações dos cristãos, mas, por meio destes, na
história, na economia e na política. Em seu livro Surpreendido pela Esperança,
Wright sugere o perdão da dívida externa, principalmente de países africanos e
pobres que vivem presos economicamente aos países ricos. Alguns líderes
evangélicos de direita destes países protestam. Para Wright, a história de Deus
é a história de um povo e este povo precisa tomar atitudes coletivas para
manifestar as consequências da justiça de Deus em suas vidas.
Conclusão
É difícil apresentar uma figura de tanto impacto na vida da igreja e na academia como N. T. Wright. Sou grato a Deus por pessoas como ele, que nos ajudam a enxergar Jesus talvez um pouco mais parecido com quem ele era e conhecê-lo melhor como o Cristo ressurreto que permanece vivo em nosso meio. Esta é claramente a intenção de Wright, declarada nos seus escritos. Ele é um modelo de estudioso e pessoa comprometida com a igreja e com a missão neste mundo, um mundo criado por Deus e destinado à recriação por Deus.
Notas
1. Wright assina suas obras acadêmicas como N. T. Wright e as mais populares, como Tom Wright.
2. Em “Apologética cristã”; a
revista de missões e doutrinas. ano 3, ed. 10, 2011. Veja a minha réplica
no blog.
3. Os últimos dois volumes
previstos são “Os Evangelhos e a História de Deus” e “Os Cristãos Primitivos e o
Propósito de Deus”.
4. Escrevo com pesar sobre a
postura de John Piper, de quem tenho aprendido muito. O seu livro “A Alegria
das Nações” teve grande impacto na minha vida e moldou novamente a minha
missiologia há cerca de dezessete anos. Entretanto, considero-o equivocado,
mesmo que bem intencionado, na sua crítica a Tom Wright.
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