quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Quem é N.T. Wright?

http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/333/heresia-uma-palavra-que-nao-combina-com-n-t-wright

Texto de Timóteo Carriker

Gosto muito de surfar. Neste esporte, Kelly Slater, dez vezes campeão mundial, foi o atleta mais novo (20 anos) e também o mais velho (38 anos) a conquistar o título. Slater se destaca entre os mais próximos concorrentes. Essa é a impressão que se tem também ao escrever sobre a importância de Nicholas Thomas Wright.1
                

Quem é N. T. Wright?

Nascido em 1948, N. T. Wright é um dos estudiosos de Novo Testamento mais conhecidos e respeitados. A lista de suas qualificações e publicações é extensa. Além de dois doutorados acadêmicos, ele recebeu nove outros doutorados honorários das melhores universidades britâncias, canadenses e americanas. São mais de setenta livros publicados, centenas de artigos em revistas acadêmicas, entre outras, como também entrevistas para TV e rádio. É um homem da academia, tendo ensinado mais de vinte anos na Universidade de Oxford, na Inglaterra, e na Universidade McGill, no Canadá. É também homem da igreja, tendo servido na Igreja Anglicana como deão de Lichfield por cinco anos, teólogo cânone de Westminster e bispo de Durham durante sete anos.

Sua contribuição

Não é fácil classificar Wright. Grosso modo, ele representa os cristãos mais conservadores -- pelo menos em comparação com muitos liberais com os quais dialoga, como Marcus Borg, por exemplo. Entretanto, o campo de cristãos “conservadores” é bastante abrangente e entre eles Wright se identifica mais com os “evangelicais abertos”; concorda com alguns dos preceitos da “Nova Perspectiva sobre Paulo” e simpatiza com a busca histórica pela identificação da pessoa de Jesus, apesar de ser um crítico ferrenho do “Seminário de Jesus” -- grupo de historiadores e expositores bíblicos do Novo Testamento que procura identificar as fontes “autenticamente históricas” dos Evangelhos para descrever quem Jesus “realmente” era. Wright promove publicamente muitas posições evangélicas tradicionais, como a ressurreição corporal de Jesus, a segunda vinda do Filho de Deus, a morte substitutiva de Cristo, o pleno perdão por Deus em Cristo Jesus e, apesar da alegação contrária de alguns críticos, a justificação pela fé. Publicamente também denuncia o reconhecimento das uniões homossexuais como legítimas. Tudo isto é o que esperamos de líderes do mundo evangélico conservador. Porém, o que torna Wright diferente?

As contribuições de Wright são principalmente duas. A primeira é que ele procura entender e dialogar com “todos os estudiosos” do Novo Testamento, não apenas com os conservadores, o que é raro entre estudiosos conservadores do Novo Testamento. Apresenta a sua dívida para com “todos” eles como também sua crítica brilhante. Ou seja, não tem medo de aprender e aproveitar ideias acertadas daqueles que alguns conservadores consideram “campo inimigo”. Essa atitude tem um preço. Por um lado, ele é mal interpretado, às vezes a ponto de ser acusado de heresia,2 como se abraçasse ideias liberais. Por outro, é taxado de fundamentalista por alguns liberais. Entretanto, a busca pela verdade exige que os julgamentos sejam adiados até que o material seja adequadamente examinado. Assim, Wright é um modelo de estudioso que procura objetividade e imparcialidade nas suas pesquisas -- características raras na guilda de teólogos.

A segunda -- e a maior -- contribuição de Wright está nas suas propostas a respeito do Jesus histórico. Não há espaço aqui para elaborá-las e talvez não seja necessário fazê-lo. Basta dizer que ele aproveita uma vasta literatura das últimas décadas que avançou significativamente no conhecimento do pano de fundo judaico de Jesus, a fim de situá-lo “dentro” deste contexto.

É estranho que alguns críticos de N. T. Wright avisem os leitores sobre os “perigos do enfoque excessivo no contexto judaico” ao se estudar sobre Jesus; preferem o contexto da Reforma Protestante para esclarecer quem era Jesus e qual era a sua missão. Hoje, os melhores expositores bíblicos não medem esforços para entender Jesus, o seu ensino e as suas ações dentro do pano de fundo judaico da sua época. Por que este Jesus “histórico” é melhor que o Jesus dos reformadores? Ora, estes exerceram um papel crucial para tirar a roupagem medieval do Jesus da tradição católica. No entanto, não tiveram acesso a centenas de documentos contemporâneos de Jesus, os quais temos hoje e nos ajudam a enxergá-lo mais próximo do seu contexto histórico. Negar isto é simplesmente “enfiar a cabeça no buraco”. Dar conta disto é tarefa complexa e árdua, que envolve debates e teorias que têm sido testados ao longo do último século. Wright é uma luz brilhante nesse processo.

Sua produção

Talvez a sua produção mais significativa seja a série de seis volumes intitulada “Origens Cristãs e a Questão de Deus”, com três volumes publicados: “O Novo Testamento e o Povo de Deus” (1992), “Jesus e a Vitória de Deus” (1996) e “A Ressurreição do Filho de Deus” (2003). O quarto volume, “Paulo e a Justiça de Deus”, será lançado nos próximos meses.3

Cada volume tem em torno de setecentas a oitocentas páginas e a contribuição dada já posicionou Wright como o estudioso do Novo Testamento mais importante do século para muitos biblistas conservadores e liberais. A obra tem influenciado os estudiosos do Novo Testamento tanto quanto os escritos de Rudolf Bultmann o fizeram no século passado. Para Gordon Fee, por exemplo, conhecido expositor conservador e pentecostal do Novo Testamento, Wright é a maior influência de sua vida acadêmica.

Apesar disso, ou talvez por causa disso, há controvérsias de toda sorte. Afinal, as suas mais de 20 mil páginas não podem agradar a todos. Dezenas de críticos de Wright, os quais tenho acompanhado, reconhecem a sua contribuição à compreensão do Novo Testamento, ainda que discordando dele em alguns pontos. Contudo, alguns avaliam-na de modo diferente.

Arauto ou herege?

Faço aqui uma distinção não inteiramente justa. Há teólogos que querem promover a fé cristã e outros que não se importam com isso. Interessa-nos os primeiros. Para estes, há basicamente duas maneiras de promovê-la: citando as doutrinas consagradas pelos principais credos e, ou, teólogos do seu grupo (se católico romano, as encíclicas da igreja; se evangélico, os teólogos reformados) ou enraizando as suas ideias nas Escrituras. Enquanto uns velam pela “sã doutrina”, outros querem saber o que a Bíblia diz e como podemos entendê-la e colocá-la em prática. Para isto, buscam compreender o contexto em que as passagens estão inseridas. Os primeiros são principalmente dogmáticos e o segundo grupo é denominado “biblista”. Os biblistas são quase sempre vistos como suspeitos pelos dogmáticos, como os próprios reformadores o eram na sua época. Surpreendentemente, os dogmáticos gastam mais energia criticando seus colegas do que com aqueles que não se interessam pela fé ou que são ateus assumidos.

Sei que esta distinção é uma caricatura e que bons dogmáticos procuram interagir com as Escrituras e bons biblistas jamais ignoram as interpretações (dogmas) feitas ao longo dos séculos. Entretanto, o argumento final de cada grupo não deixa de ser distinto: ou “Lutero (Calvino etc.) diz...” ou “a Bíblia diz...”. E, para complicar ainda mais a nossa descrição, os reformadores protestantes advogavam a segunda estratégia -- e não a primeira -- ao conclamar “Sola Scriptura”!

Assim é a natureza do debate entre Tom Wright e John Piper sobre a doutrina da “imputação da justiça de Deus” àqueles que creem. Ambos escreveram livros a respeito desta questão. Piper reclama que a posição de Wright não coincide com a perspectiva dogmática e Wright, por sua vez, que Piper não está ouvindo o que as Escrituras dizem. Independentemente de quem “está certo”, Wright adota o princípio protestante da autoridade última das Escrituras, enquanto Piper4 adota o princípio católico da autoridade da tradição da igreja. Neste debate específico, Wright é acusado de negar a doutrina da justificação pela fé. Porém, não é o caso. Ele afirma a justificação pela fé, mas esclarece que uma passagem específica, Romanos 4.3, que de fato foi um pilar na Reforma de Lutero, não fala sobre a justiça “imputada”. A observação de Wright é tanto linguística (a melhor tradução da palavra não é “imputar”) quanto literária (esta não é a direção do argumento de Paulo em Romanos) e histórica (o debate luterano sobre o sistema de indulgências não corresponde à crítica de Paulo sobre a relação entre a graça e a Lei).5 Wright afirma que em outras passagens Deus imputa aspectos do seu carácter na vida daqueles que creem, o que não ocorre no trecho citado.

Tudo isto faz parte de uma perspectiva maior de Wright, que considera o evangelho essencialmente público. Por “público” ele entende a revelação de Deus dentro da história e o seu propósito final para a criação. Neste sentido, as boas novas (o evangelho) visam novos céus e nova terra, e não apenas a transformação individual -- mesmo que a inclua. As implicações desta perspectiva é que a justiça de Deus precisa ser concretizada não apenas nos corações dos cristãos, mas, por meio destes, na história, na economia e na política. Em seu livro Surpreendido pela Esperança, Wright sugere o perdão da dívida externa, principalmente de países africanos e pobres que vivem presos economicamente aos países ricos. Alguns líderes evangélicos de direita destes países protestam. Para Wright, a história de Deus é a história de um povo e este povo precisa tomar atitudes coletivas para manifestar as consequências da justiça de Deus em suas vidas.

Conclusão

É difícil apresentar uma figura de tanto impacto na vida da igreja e na academia como N. T. Wright. Sou grato a Deus por pessoas como ele, que nos ajudam a enxergar Jesus talvez um pouco mais parecido com quem ele era e conhecê-lo melhor como o Cristo ressurreto que permanece vivo em nosso meio. Esta é claramente a intenção de Wright, declarada nos seus escritos. Ele é um modelo de estudioso e pessoa comprometida com a igreja e com a missão neste mundo, um mundo criado por Deus e destinado à recriação por Deus.

Notas

1. Wright assina suas obras acadêmicas como N. T. Wright e as mais populares, como Tom Wright.
2. Em “Apologética cristã”; a revista de missões e doutrinas. ano 3, ed. 10, 2011. Veja a minha réplica no blog.
3. Os últimos dois volumes previstos são “Os Evangelhos e a História de Deus” e “Os Cristãos Primitivos e o Propósito de Deus”.
4. Escrevo com pesar sobre a postura de John Piper, de quem tenho aprendido muito. O seu livro “A Alegria das Nações” teve grande impacto na minha vida e moldou novamente a minha missiologia há cerca de dezessete anos. Entretanto, considero-o equivocado, mesmo que bem intencionado, na sua crítica a Tom Wright.

5. Novamente, para mais detalhes, veja meu texto aqui.

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